(Escrito por: Esther de Figueiredo Ferraz)
Entra-me pela porta do escritório um homem cujo nome, idade, profissão, condição social, vida pregressa, ignoro completamente. Também para ele sou uma desconhecida; exceção feita a meu nome e a meu título profissional, não sabe quem eu seja na realidade: qual minha exata maneira de pensar, de sentir, quais meus antecedentes pessoais e familiares, se estou ou não em condições de o comprometer ou ajudar. No entanto, essa criatura cuja própria existência física eu ignorava momentos atrás, a um simples gesto meu autorizando-a a falar, se põe a narrar-me minudentemente sua vida, confessando-me o que jamais ousaria confessar ao pai, à esposa, a um padre ou mesmo a si próprio. Desnuda-me a alma, mostrando-se em toda sua miséria, sem me esconder uma ferida, uma chaga, um carcinoma. Leva-me até a intimidade de sua alcova e me permite defrontar o segredo de seu fracasso matrimonial. Ou então, cabeça baixa e olhar esquivo, explica-me como furtou, como falsificou um cheque, como se deixou corromper no exercício de função pública, como e onde escondeu o produto do crime. Outras vezes, enfim, afirma-se vítima de injusta acusação, revelando o temos de não poder provar convincentemente sua inocência posta em dúvida. E em todos esses casos exibe as provas que lhe socorrem ou lhe comprometem o direito, que o incriminam ou lhe amparam a absolvição. Sabe, embora não me conheça, que, ainda que eu não lhe aceite a causa, jamais usarei dessas informações em seu prejuízo. Fornece-me documentos preciosos e únicos que são a chave de sua defesa ou que, ao contrário, constituem a prova material de sua culpa. Confia-nos sem mesmo exigir um recibo, e tem a certeza, sempre sem me conhecer, de que nem por todo o ouro do mundo eu os sonegaria ou os deixaria cair em mãos da parte adversa.
Encerra-se a entrevista e, pela porta do escritório, sai um homem que para mim já não é mais um estranho. Eu, ao contrário, continuo a ser para ele o mesmo enigma inicial. Ainda não sabe quem eu seja na realidade: qual minha exata maneira de pensar, de agir, de sentir, quais meus antecedentes pessoais e familiares, se estou ou não realmente em condições de ajudá-lo. Mas de uma coisa está certo: não o trairei. Tem a absoluta e sólida convicção de que aquela desconhecida ficou para trás, depositária do seu segredo, senhora do seu destino e de sua felicidade, de agora em diante preferirá sacrificar-se a sacrificá-lo, deixar-se-á, se necessário, matar, mas não permitirá que um só ato seu desmereça a confiança com que a honrou o desconhecido de minutos atrás.
Bastariam esses poucos minutos, essa poeira de tempo escoada entre o abrir e o fechar de uma porta, para nos convencer de toda a beleza e grandeza da profissão de advogado. A homenagem que a cada um de nós e, consequentemente, à carreira que abraçamos, presta cada cliente que nos entrega o patrocínio de uma causa é tão eloqüente que bem se compreende o alcance da expressão de Voltaire quando, referindo-se à sua verdadeira tendência vocacional, suspirou: “Eu quisera ter sido advogado, é a mais bela profissão deste mundo.”
Não importa que os profissionais de outro ofício injustamente nos representem, como diz Henri Robert, “sob a figura de insuportáveis falastrões, intrigantes, amantes da chicana, das fraudes, das demandas, hábeis em defender todas as causas, pleiteando o reconhecimento da inocência mesmo quando convencidos da culpabilidade dos clientes.” Ou que o público leigo veja em nossa carreira a “arte de legalizar a fraude”, ou a “defesa sofista do que é torto.” Que os demais membros da família judiciária às vezes subestimem a importância de nossa contribuição, seja ao desenvolvimento do Direito, seja à própria obra da distribuição da Justiça. Pouco importa, enfim, que o cliente, uma vez servido, num gesto de ingratidão que já não nos surpreende mas ainda nos consegue ferir, nos vire as costas e nos atire pedras, atribuindo a outros fatores, ao seu bom direito, à ciência e à superioridade dos juízes, ao desleixo da parte contrária, o êxito da causa por nós patrocinada. Tudo isso nada significa. Enquanto houver sobre a face da Terra o gesto incessantemente renovado de um homem que bate à porta de um desconhecido e lhe confia a defesa de sua liberdade, de sua honra se sua família, de seu patrimônio, bens supremos que constituem a razão de ser de nossa existência, estará sendo feita a apologia da profissão de advogado.
Fonte: Escola Paulista de Magistratura – Diálogos e Debates, julho de 2011, p. 17.