FILHOS DA VIOLÊNCIA

Autora: Renata Rivitti.

A Lei Maria da Penha acaba de completar 15 anos. Foi apenas no ano de 2006, após condenação do Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA por não dispor de mecanismos suficientes e eficientes para proibir a prática de violência doméstica contra a mulher, que foi sancionada a Lei 11.340/2006. Como resposta ao reconhecimento internacional de negligência, omissão e tolerância à violência de gênero, a lei criou importantes mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher no país.

Observa-se, assim, que a visibilidade dada ao fenômeno é fato bastante recente da nossa história, assim como o repúdio e a não aceitação da violência contra a mulher no Brasil. É verdade que os números nacionais ainda mostram dados alarmantes da violência, agravada na pandemia. A superação da histórica naturalização e tolerância da violência doméstica e familiar ainda configura imenso desafio, mas temos alcançado, mais fortemente nos últimos cinco anos, resultados consideráveis. A violência contra a mulher hoje está em todas as mídias, há ampla informação circulando e o repúdio social só cresce. 

Mas combater a violência contra a mulher não basta. Os filhos da violência precisam ser enxergados, os impactos da violência a que são expostos conhecidos, os cuidados terapêuticos providos e o ciclo finalmente quebrado. 

NÚMEROS

Conforme Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, apesar do aumento da subnotificação na pandemia, 230.160 mulheres denunciaram um caso de violência doméstica em 26 estados brasileiros, o que significa 630 denúncias por dia (p. 93). No tocante aos chamados às Polícias Militares no 190, foram feitas ao menos 694.131 ligações relativas à violência doméstica, ou seja, a cada minuto de 2020, “1,3 chamados foram de vítimas ou de terceiros pedindo ajuda em função de um episódio de violência doméstica” (p. 94).

Enquanto observamos, alarmados, os números da violência, sabedores de que ainda são subnotificados, de rigor voltarmos os olhos a um recorte inédito da pesquisa que demonstra que ao menos 60% das mulheres que foram vítimas de violência doméstica na pandemia têm filhos, como demonstra o gráfico de número 69, na página 224 do anuário.

A título de exemplo, 79,9% das mulheres que sofreram violência doméstica por esfaqueamento ou tiro, 74,3% das que sofreram espancamento ou tentativa de estrangulamento, 70,9% das que sofreram ameaça com arma de fogo ou faca e 65,2% das que sofreram batida, empurrão ou chute, tinham filhos. 

Estamos falando de um número bastante expressivo de crianças e adolescentes expostos a ambientes de grande tensão e violência doméstica nos domicílios brasileiros no ano de 2020.

E crianças e adolescentes não são testemunhas passivas do barulho, tensão e violência na casa. Crianças e adolescentes expostos à violência doméstica são dominadas por sentimentos tão intensos, que sequer deveriam ser chamados de “testemunhas”, terminologia que pressupõe maior passividade. 

Durante incidentes violentos, as crianças podem tentar arbitrar, proteger a mãe e distrair o agressor, o que as coloca em situação de extremo risco pessoal. Outras ainda se escondem, tapam os ouvidos, cuidam de irmãos mais novos ou procuram ajuda externa. São intensos os sentimentos de medo, angústia, ansiedade, culpa, raiva, tristeza, confusão, frustração, preocupação, constrangimento e esperança de resgate. 

Dada a situação de risco em que se compreendem, conexões cerebrais positivas são substituídas por negativas, e a resposta fisiológica ao risco para fins de sobrevivência, ativada frequentemente, torna-se tóxica, podendo provocar impactos significativos no processo de aprendizagem e na saúde mental de crianças e adolescentes ao longo de toda a vida. 

Estudos mostram importantes alterações comportamentais em bebês, com problemas de sono, excesso de choro, irritabilidade. Já em fase escolar, os prejuízos alcançam a capacidade de concentração, foco e aprendizagem. Ao longo dos anos, crianças e adolescentes de lares violentos têm maior pré-disposição a desenvolverem enurese noturna, depressão, ideação suicida, uso abusivo de alcool e drogas, gravidez na adolescência e comportamentos ilícitos. Alguns estudos chegam a atestar que até mesmo o desenvolvimento social pode restar prejudicado, com incapacidade de desenvolvimento da empatia, maior tendência  de comportamentos agressivos, sensação de deslocamento, solidão e dificuldade de estabelecer relacionamentos.

E os prejuízos ao desenvolvimento integral dos pequenos agravam-se ainda mais quando consideramos o impacto da violência contra a mulher na saúde mental dela. As mulheres que vivem com parceiros abusivos enfrentam enormes desafios em serem as melhores mães que podem ser. Com a saúde mental abalada, mulheres podem tornar-se apáticas e menos responsivas às necessidades dos filhos, adotar válvulas de escape como saídas prolongadas de casa, uso abusivo de drogas e álcool, com prejuízos à sua capacidade protetiva e de provimento de cuidados. Ainda, podem tornar-se agressivas, colaborando para um lar cada vez mais hostil. Ao serem mantidos isolados de fontes potenciais de apoio, crianças e adolescentes aprendem a ver o mundo como assustador e inseguro.

Mas não é só. Pesquisas apontam que a exposição à violência doméstica aumenta sensivelmente as chances de perpetuação da violência doméstica e familiar ao longo das gerações.

Além de inúmeros estudos internacionais, um estudo nacional indica que o mecanismo de transmissão intergeracional da violência doméstica (TIVD) postula que a violência doméstica será maior em lares onde a mulher, seu parceiro ou ambos viveram em um lar com violência doméstica (PCSVDF Relatório Executivo III – 2016, p. 9).

É verdade que cada criança é única. Mesmo as crianças da mesma família são afetadas de maneiras diferentes, dependendo de fatores como idade, sexo, relação com o abusador, papel na família e resiliência. Nem todas caem na armadilha de se tornarem vítimas ou agressoras. Mas a correlação está documentada, a indicar a imprescindibilidade de enxergarmos as crianças e quebrarmos o ciclo, como estratégia fundamental de combate à violência doméstica e familiar.

O artigo 227 da nossa Constituição Federal estabelece, desde 1988, o direito de crianças e adolescentes de viverem sem violência, impondo às famílias, ao Estado e a toda a sociedade o dever de garantir esse direito, em caráter universal, com absoluta prioridade. 

E qualquer conduta que exponha a criança ou o adolescente, direta ou indiretamente, a crime violento contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que cometido, configura violência psicológica, nos exatos termos do artigo 4º, II, “c”, da Lei nº 13.431/2017.

Nesse contexto, crianças e adolescentes que vivem em ambiente com violência doméstica e familiar são também vítimas diretas da violência, ainda que na modalidade psicológica, portanto titulares dos direitos específicos à condição que ostentam, conforme expressa previsão legal da lei acima referida.

Com a Lei 13.431/17 e seu decreto regulamentador nº 9.603/18 deu-se concretude ao direito de crianças e adolescentes de viverem sem violência, inaugurou-se uma nova organização do SGD, com mecanismos de prevenção e de enfrentamento transversal da violência, sempre com foco na acolhida e na não revitimização. Merece destaque ainda o rol de finalidades a nortear toda e qualquer intervenção do SGD, conforme artigo 3º do decreto, e a garantia de efetiva participação de crianças e adolescentes, tanto no âmbito de feitos judicias quanto no âmbito do provimento de cuidados pela rede protetiva, com escuta por profissionais capacitados e aptos a acolher e escutar, de modo a evitar a violência institucional.

As crianças expostas a violência doméstica e familiar existem e são muitas. Elas precisam ser vistas e suas necessidades atendidas. As crianças cuidadas no presente serão o futuro desta nação, oxalá sem mais violência.

RENATA LUCIA MOTA LIMA DE OLIVEIRA RIVITTI – Promotora de Justiça de Jacareí, SP. Assessora da Procuradoria da Justiça de São Paulo, no centro de apoio de infância e juventude.